A tecnologia realiza o saneamento básico no meio rural, aumenta a disponibilidade hídrica e atende produtores familiares. As palmas forrageiras irrigadas com água de reúso atingiram quase o dobro da produção em relação às que receberam água do sistema de abastecimento. O motivo é que a água de reúso tem maior concentração de nutrientes. O sistema utiliza um biofiltro com minhocas, que também gera húmus e complementa a renda do produtor.
Amenizar os impactos das secas e chuvas irregulares é um dos grandes desafios da agricultura, principalmente para quem vive no semiárido brasileiro. Uma alternativa para contornar o problema foi testada pela Embrapa e utilizada na região. O sistema Integrado de Bioágua Familiar reutiliza a água doméstica gerada em pias, chuveiros e lavanderias – chamada de “água cinza” – para produzir alimentos e forragem.
Um estudo realizado pela Embrapa Semiárido (PE), com o plantio de palma forrageira, mostrou que as plantas irrigadas com água de reúso atingiram quase o dobro da produção, em comparação ao uso de água da empresa fornecedora local. Isso porque, além de ser mais uma fonte hídrica, após passar por tratamento no biofiltro, a água também apresenta maior concentração de nutrientes como nitrogênio, fósforo e potássio, essenciais para o desenvolvimento das plantas.
A pesquisadora Roseli Freire de Melo, responsável pelos estudos, explica que o sistema funciona como um suplemento hídrico, já que não é uma irrigação constante e que outras águas também podem ser aproveitadas. “Mesmo sendo uma irrigação complementar, é possível notar diferenças positivas em seu desenvolvimento nas plantações, como folhas mais verdes, nutridas e maior suporte de forragem, pois o tempo de espera entre um corte e outro é reduzido”, enfatiza a empresa. investigador.
Para ela, o reaproveitamento da água cinza aparece como uma oportunidade para a sustentabilidade dos pequenos sistemas de produção. “Fortalece a produção familiar, faz saneamento básico no meio rural, aumenta a disponibilidade de água e acaba transformando um problema em oportunidade, além dos benefícios ambientais”, destaca.
Como funciona o sistema Family Biowater?
O sistema Bioágua Familiar para reaproveitamento de água cinza em casa foi desenvolvido por meio de uma parceria entre a Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), a ONG Atos e famílias agricultoras. É uma unidade para o tratamento de águas residuais domésticas.
Antes de chegar às plantações, a água das pias, chuveiros, lavanderias e máquinas de lavar passa por um processo de tratamento. Primeiro passa por uma caixa de gordura, depois vai para o filtro e por último para o tanque de reuso, de onde é bombeado para um tanque de água, e daí para o sistema de irrigação.
Segundo a pesquisadora Roseli Melo, todas as etapas são essenciais, mas o filtro pode ser considerado a parte principal do sistema, pois é onde a água será tratada. Tem aproximadamente um metro de profundidade e possui cinco camadas de diferentes composições (de baixo para cima): seixo, cascalho, areia lavada, serragem e, por fim, húmus com minhocas.
Para cada unidade do Bioágua, são necessárias aproximadamente mil minhocas, do tipo californiano, adaptadas ao semiárido. Alimentam-se de aparas de madeira e húmus, absorvendo qualquer segmento desnecessário, como produtos de limpeza.
Melo alerta que alguns cuidados devem ser tomados com o filtro: cubra-o com uma tela para evitar a entrada de insetos e outros animais, mantenha-o entre seis a oito meses e mantenha sempre a umidade para que os vermes possam sobreviver.
sistema eficiente
Para avaliar a eficiência do uso da água cinza, foi implantado um experimento com espécies forrageiras como palmeira, leucena, gliricídia e moringa no Campo Experimental de Caatinga, da Embrapa Semiárido. Foram comparadas plantas umedecidas com água de reúso, com água da empresa fornecedora e sem irrigação, com e sem uso de esterco.
Neste sistema analisado, são gerados cerca de 1.500 litros de água por semana, correspondendo ao consumo aproximado de uma família com cinco pessoas, suficiente para irrigar cerca de 1.260 palmeiras forrageiras.
Em sete meses de cultivo, cada palmito produziu em média 3,67 raquetes em condições secas (sem irrigação e sem esterco), e 6,3 raquetes quando irrigadas com água da empresa fornecedora, com uso de esterco. Por outro lado, os irrigados com água de reúso e esterco atingiram uma média de 12,33 raquetes, correspondendo a quase o dobro da produção em relação à água não reaproveitada.
Considerando o custo médio de R$ 0,20 para a venda da raquete, a geração de receita estimada para esta área é em torno de R$ 3,1 mil para o período analisado. O pesquisador da Embrapa João Ricardo Ferreira de Lima, que realizou o estudo de viabilidade econômica desse sistema, detalha que “com um investimento de implantação de aproximadamente R$ 6.500, essa água, que antes seria descartada, pode ser tratada, armazenada e utilizada para irrigação, a fim de aumentar a produtividade das lavouras existentes e fazer com que o produtor economize, a cada sete meses, cerca de R$ 3 mil com a compra de raquetes de dendê para alimentar os animais, ou obter uma receita de mesmo valor, caso decida comercializar” .
Outro aspecto econômico importante do sistema é que ainda gera húmus de minhoca, que pode ser usado diretamente na área do produtor ou, considerando a reprodução de minhocas colocadas no filtro, pode se tornar mais uma fonte de renda. Estima-se que, em um período de seis meses, o sistema será capaz de gerar cerca de 300 quilos de húmus. Um valor médio de R$ 5,50 por quilo significa a geração de R$ 1,65 mil semestralmente, em poupança ou renda, no caso da comercialização.
Assim, de acordo com Lima, levando em conta o investimento inicial, os custos de manutenção, os insumos provenientes do corte da palma e da retirada do húmus, todos os indicadores mostram a viabilidade econômica da produção da palma irrigada pelo sistema de reuso de água. “Além de viável, o tempo de recuperação do investimento é muito curto, próximo a apenas um ano”, enfatiza.
A experiência do usuário
A tecnologia também foi introduzida em comunidades rurais do semiárido, como forma de testar e demonstrar seu potencial para promover a segurança alimentar dos agricultores familiares. Um dos beneficiários da implantação do sistema Bioágua Familiar é o produtor Humberto Ferreira de Souza, do município de Uauá, na Bahia. Ele conta que a tecnologia ajudou muito sua família, pois a água cinza, que antes era jogada fora, agora é tratada e usada para irrigar suas lavouras, evitando também outros inconvenientes, como o aparecimento de mosquitos, que era comum. “Hoje não há mosquitos em casa e ainda regamos as plantas”, acrescenta.
A agricultora Antônia Andrade de Araújo, da Comunidade Indígena Coelho Atikum Jurema, em Petrolina (PE), diz estar “feliz da vida”, porque só a chuva não dava para as plantações e precisava levar água de um barreiro perto dela. área. “[Com a implantação do sistema, há cerca de um ano,] mudou tudo para mim. Agora minha água está certa, não vou mais carregá-la. Se não chover, tudo bem e se chover, tudo bem também”, declara.
A área de cerca de 800 m², que tinha poucas plantas e produzia pouco milho e feijão para o consumo da família, hoje abriga uma horta e um pomar muito variado, de onde saem abóbora, acerola, mamão, caju, pinha, tangerina já foram colhidos. , entre outras frutas e legumes. “Acho bonito e gosto de comer, e aqui não tem veneno”, orgulha-se.
Sete pessoas moram na casa de Dona Antônia Araújo, e a água para consumo vem de um caminhão pipa que eles pagam todo mês. Ela conta que a água utilizada foi toda desperdiçada no terreiro e que se arrependeu de não ter usado. “Agora, as plantas ficaram mais bonitas, cresceram mais, mudaram de folha. É uma coisa muito bonita, para mim é maravilhoso”, comemora.
O produtor Rinaldo de Lima, morador do Sítio Coelho, em Petrolina, relata que também precisou regar as plantas “no balde”. Agora não falta água, pois ela complementa a chuva, armazenada na cisterna, com a do barreiro e também a do reúso. “Gastamos muita água para tudo, então já é bem aproveitada. Ela usa a água e não a desperdiça”, declara.
Com essa segurança, irriga as plantas que já tinha e também está investindo em outras culturas. “Coloco pitaya, limão tahiti, mandioca, banana, batata, melancia… tem de tudo um pouco. Em casa eu compraria [esses alimentos] e não estou mais comprando, tenho tudo que estou produzindo”, diz o produtor.
Ele está investindo em uma área maior e mais variada, com irrigação por gotejamento, visando a comercialização do excedente. “Meu plano é produzir para poder fazer minha feira daqui, e trabalhar agora para que em um ano eu possa ter o retorno do que apliquei”, planeja.
Qualidade da água
A água gerada diariamente nas residências, pela lavagem de louças e roupas, banheiras e pias de banheiro, causa preocupação em relação à sua qualidade para o solo e as plantas. Por isso, são tratados no Bioágua, e seu uso nesses sistemas tem sido monitorado por meio de análises físico-químicas realizadas no Laboratório Agroambiental da Embrapa Semiárido.
De acordo com a pesquisadora responsável, Paula Tereza de Souza e Silva, as avaliações comprovaram que, depois de tratada, a água tem qualidade suficiente para irrigação, podendo ser aplicada tanto em culturas alimentares como forrageiras. “O que observamos é que o tratamento de águas cinzas é bastante promissor, pois remove uma quantidade significativa de matéria orgânica”, explica.
Para ela, um dos aspectos mais interessantes é que, na maioria das análises, a presença de nitrogênio e fósforo é observada em quantidade significativa. “Isso é muito bom para a agricultura porque você já tem água enriquecida com esses nutrientes, que são essenciais para o desenvolvimento das plantas, e isso aumenta a produção e diminui a necessidade de outra fonte de fertilizante”, diz.
É importante ressaltar, porém, que a água dos sanitários não é utilizada neste sistema.
Reaproveitamento de água cinza para produção de alimentos e forragens