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Mitos e verdades sobre a dieta sólida para bezerras leiteiras

Artigo publicado anteriormente no site MilkPoint.

Imagem Revista LI


 Durante o período de aleitamento, a maior parte do desempenho é explicada pela dieta líquida. E é por isso que muito se discute sobre os programas de aleitamento. No entanto, a dieta líquida começa com a colostragem, passa pelo leite de transição e depois pelo leite ou sucedâneo que será fornecido durante o período de aleitamento.

 Além disso, não podemos esquecer da água bebida, extremamente importante para que o animal se mantenha hidratado, além de sua relação positiva com o consumo de dieta sólida. Dependendo do programa de aleitamento, a dieta sólida terá um menor papel na determinação do desempenho, mas somente com seu consumo o animal poderá ser desaleitado sem que ocorram perdas no desempenho.

 Nós já tratamos aqui diversas vezes, sobre as diferenças nos programas de aleitamento e como eles podem impactar o consumo da dieta sólida. À medida que aumentamos o volume de dieta líquida, temos reduções no consumo de dieta sólida. No entanto, esta relação negativa é mais perceptível a partir de consumos em torno de 800-850g de MS da dieta sólida, o que representa 7-7,5 L, considerando 12,5% de sólidos (Figura 1; Gelsinger et al., 2017). 

Então, esta é nossa primeira verdade: altos volumes de dieta líquida reduzem o consumo de dieta sólida, o que pode atrapalhar o desaleitamento. 

Figura 1. Relação entre consumo de dieta líquida e dieta sólida (Adaptado de Gelsinger et al., 2017)
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Felizmente, a maior parte dos produtores inicia o fornecimento de concentrado e de água na primeira semana de vida, como mostram alguns levantamentos nacionais (Santos e Bittar; Azevedo et al., 2020). Esta é uma prática eficiente para o consumo precoce de concentrado.

 Esses mesmos levantamentos mostraram também, que a maior parte dos produtores fornece concentrados peletizados ou farelados. A depender do tamanho de partícula dos concentrados farelados, que deve ser >1,2 mm, não há diferença quando comparado ao peletizado, em relação ao desempenho ou desenvolvimento ruminal.

No entanto, como são concentrados com maior taxa de degradação, colocam o animal em maior risco de acidose ruminal, de acordo com o nível de amido ou de FDN (fibra em detergente neutro) dos mesmos, podendo existir necessidade de fornecimento de feno.

Por outro lado, os concentrados texturizados apresentam uma menor taxa de degradação, muitas vezes contém casca de aveia como fonte de fibra, o que aumenta a mastigação e reduz o risco de acidose. Mas, se não for bem misturado e com ingredientes de alta qualidade, pode resultar em seleção no cocho, fazendo com que os animais consumam uma dieta desbalanceada. 

Assim, este é o primeiro mito, uma vez que a forma física do concentrado não afeta o consumo ou o desempenho, desde que este tenha formulação e tamanho de partícula adequados.

Figura 2. Concentrado texturizado, farelado e peletizado

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O concentrado deve conter ingredientes de alta digestibilidade, com NDT (nutrientes digestíveis totais) em torno de 80% (NRC, 2001). Lembre-se que os bezerros estão com o rúmen em desenvolvimento, então a maior parte dos nutrientes deve ser oriundo de ingredientes nobres como milho e farelo de soja.  De acordo com o NRC (2001), o teor de proteína bruta (PB) deve ser em torno de 20%.  Isso normalmente é considerado baixo por muitos técnicos, mas há que se lembrar que a maior parte da proteína virá da dieta líquida para atender as exigências dos bezerros. 

De qualquer modo, sempre há oferta de concentrados com maiores teores de PB. Em levantamento do programa Alta Cria de 2020 (Azevedo et al., 2020), 25% dos produtores fornece concentrado com >24% de PB, o que não aumenta o desempenho dos animais, mas aumenta o custo de produção.  

Muitos trabalhos já mostraram que existe um platô para o aumento do desempenho em função de maior teor de PB, e isso está em torno de 20-22% (Akayezu et al., 1994; Stamey et al., 2012; Hill et al., 2013; Daneshvar et al., 2017). Assim, temos mais um mito! Nesta conversa é importante adicionar o fato de que a palatabilidade/aceitabilidade da fonte de proteína afeta o consumo de concentrado. Também já está provado que os bezerros simplesmente adoram farelo de soja, de forma que é um ingrediente obrigatório para os concentrados de bezerros. 

Com relação as recomendações de fibra, as sugestões de Davis & Drackley (1998) tem sido as mais utilizadas para a formulação de concentrados, muito embora este seja um tema bastante polêmico, mesmo na comunidade científica. Existem faixas bem largas de recomendação para fibra em detergente neutro (FDN: 15-25% MS) e fibra em detergente ácido (FDA: 6-20% MS). Enquanto os limites superiores indicam se o concentrado tem ingredientes de alta digestibilidade para um animal com o rúmen e desenvolvimento; os limites inferiores sugerem o limite mínimo de fibra para garantir saúde ruminal. 

Então, é uma verdade dizer que bezerras precisam de fibra na dieta, mas existe um limite para isso que faz toda a diferença no manejo alimentar e no desempenho. Muito da polêmica em torno deste assunto se deve aos inúmeros trabalhos de pesquisa que mostram que o rúmen se desenvolve em reposta a presença de ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), também chamados de ácidos graxos voláteis (AGV) mais comuns na fermentação de alimentos concentrados, ou seja, os ácidos butírico e propiônico. 

Quando avaliamos perfil de fermentação de diferentes alimentos observa-se maior produção destes dois ácidos a partir de carboidratos não fibrosos (CNF) e de ácido acético a partir de carboidratos fibrosos (CF). Bezerros alimentados exclusivamente com feno como dieta sólida tem o rúmen com grande desenvolvimento muscular, mas com papilas pouco desenvolvidas, impossibilitando o adequado desaleitamento dos animais (Figura 3a). 

Por outro lado, fornecer concentrado de alta qualidade, com adequado teor de fibra, resulta em desenvolvimento ruminal adequado para que o animal mantenha suas taxas de crescimento (Figura 3b). Esse adequado provimento de fibra no concentrado será importante para evitar acidose e permitir manutenção do consumo de concentrado pelos animais. 

Figura 3. Desenvolvimento do epitélio ruminal de bezerros alimentados com leite e feno ou com leite e concentrado
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Fonte : http://extension.psu.edu/animals/dairy/nutrition/calves/calf-rumen-images 

O concentrado pode ser formulado com ingredientes e aditivos que sabidamente aumentam a produção de ácido butírico e ácido propiônico ou são eficientes em controlar pH, para acelerar o desenvolvimento ruminal. 

Mas, em inúmeros trabalhos de pesquisa conduzidos na ESALQ/USP, substituindo milho por polpa cítrica ou casquinha; incluindo grãos processados; glicerina bruta; melaço; xarope de milho; monensina, ácidos orgânicos; e óleos essenciais, o que concluímos é que o aspecto mais importante para o desenvolvimento é o consumo. 

Mais uma verdade: o consumo é mais importante do que estratégias de formulação. As bezerras tem que gostar do que está sendo fornecido. Já foi mencionado que adoram farelo de soja, mas além disso inúmeros fatores afetam consumo. Só para citar alguns, temos a disponibilidade de água fresca de boa qualidade, o tamanho de partícula e, principalmente, o volume de dieta líquida fornecida. O fornecimento de forragem, normalmente feno também vai afetar todo o processo. As vezes para o bem, mas na maior parte das vezes para o mal. 

Com adequado provimento de fibra na dieta dos bezerros com o rúmen em desenvolvimento conseguimos aumentos progressivos no consumo, importante para o desaleitamento, além de maiores ganhos de peso. 

As fontes de fibra que compõem os alimentos concentrados podem ser, por exemplo, feno de alta qualidade picado, casca de soja, polpa cítrica, farelo de trigo, que é o mais utilizado pelas indústrias. A inclusão de feno deve ser feita até no máximo em torno de 5% da MS do concentrado, de outra forma o desempenho pode ser reduzido. Quando o feno for fornecido em separado, a estratégia acaba sendo um pouco  diferente, uma vez que não queremos que os animais substituam o consumo de concentrado (alta energia e alta proteína) por um volumoso que na melhor das hipóteses vai ter 15% de PB. 

Então, se o feno disponível for de boa qualidade, a ideia é fazer o fornecimento controlado de forma que ele não ultrapasse 5-7% do consumo total do animal. Quando o feno é bom, muitos bezerros deixam de consumir concentrado e isso afeta negativamente o ganho de peso. Nesse caso seria interessante adotar o conceito de dieta completa e misturar o concentrado com o feno picado. Mas, se o feno for de média-baixa qualidade, podemos deixar à vontade, pois os animais vão consumir voluntariamente em torno de 5-7% do consumo total. 

Fantástico, né? São muito espertos esses nenéns! 

Então vai aí uma verdade: podemos fornecer feno para bezerros em aleitamento, desde que de forma estratégica para não afetar negativamente o consumo de concentrado e consequentemente o desenvolvimento ruminal. 

Desaleitar animais pesados aos 60-80 dias de idade, de preferência com o sobro de seu peso ao nascer, é uma meta importante para os bezerreiros. Embora seja fácil de ser alcançada, simplesmente aumentando o fornecimento de dieta líquida, pode se tornar um prejuízo não só pelo aumento no custo, mas pela maior dificuldade para o desaleitamento. 

Desaleitar os animais em aleitamento intensivo de forma gradual, estimula o consumo de concentrado e permite que os animais mantenham suas taxas de crescimento na fase seguinte. Assim, deve se pensar no equilíbrio entre dieta líquida e dieta sólida. É o maior ganho de peso durante o período de aleitamento que resulta em maior potencial de produção de leite futuro. É um mito pensar que este efeito se deve somente à dieta líquida.  

Sim, a maior parte do desempenho é explicada pela dieta líquida, mas há que se pensar no processo de desenvolvimento ruminal e no desempenho após o desaleitamento. 

Com tantos mitos e verdades, avalie com cuidado o programa alimentar do seu bezerreiro. Entenda o quanto seu programa de aleitamento está atrapalhando o desaleitamento e o desempenho da fase seguinte. Se você estiver prolongando o período de aleitamento e, consequentemente, o custo, o tempo de ocupação e de mão de obra com os bezerros; ou se você observa que os animais estão perdendo peso logo após o desaleitamento, existe espaço para melhoria. 

Referências
 Akayezu, J.M., Linn, J.G., Otterby, D.E., Hansen, W.P., 1994. Evaluation of calf starters containing different amounts of crude protein for growth of Holsteincalves. J. Dairy Sci. 77, 1882–1889. Azevedo, R.A., Martins, L.F., Tiveron, P.M.,Teixeira, A.L., Bittar, C.M.M., Antunes, L.C.M.S., Santos, J.E.P., Rotta, P.P., et al. Alta Cria 2020. 2020. Uberaba, Minas Gerais, 2019. 1ª edição. Daneshvar, M. Khorvash∗, E. Ghasemi, A.H. Mahdavi. 2017 Combination effects of milk feeding methods and startercrude protein concentration: Evaluation on performance and health of Holstein male calves. Animal Feed Science and Technology, 223: 1–12 Davis, C.L. and J.K. Drackley. 1998. The development, nutrition, and management of the young calf. University Press, Ames. Gelsinger, S.L.; Heinrichs, A.J.; Jones, C.M. A meta-analysis of the effects of preweaned calf nutrition and growth on first-lactation performance 1. J. Dairy Sci. 2016, 99, 6206–6214, doi:10.3168/jds.2015-10744. Hill, T.M., Bateman 2nd, H.G., Quigley, J.D., Aldrich, J.M., Schlotterbeck, R.L., Heinrichs, A.J., 2013. Review: new information on the protein requirementsand diet formulation for dairy calves and heifers since the Dairy NRC 2001. Prof. Anim. Sci. 29, 199–207. Santos, G.; Bittar, C.M.M. A survey of dairy calf management practices in some producing regions in Brazil. R. Bras. Zootec., 44(10):361-370, 2015. Stamey, J. A., N. A. Janovick, A. F. Kertz, and J. K. Drackley. 2012. Influence of starter protein content on growth of dairy calves in an enhanced early nutrition program. J. Dairy Sci.  95:3327–3336.

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